Revista Ecológico sai da mesmice e separa o joio do trigo
As revistas ainda podem nos surpreender?
Atualmente temos a nossa disposição inúmeras revistas de diferentes assuntos, entre eles: femininos, masculinos, políticos, variedades, comportamento, ciência, culinária, saúde etc. etc. e etc.. Porém, como já preconizava Wolton (2006), a quantidade de informação não garante a comunicação, no caso, com o leitor . E assim, o que se vê , ou o que se lê, é uma repetição das pautas, falta de criatividade nas abordagens, umas revistas copiando as outras, modelos editoriais americanos sendo repetidos no Brasil. Ao leitor fica a sensação clara de “é tudo igual”, com raras exceções. Paralelo a essa massificação no tratamento de uma revista, vemos crescer a incessante discussão sobre o papel da mídia na sociedade e as criticas fundadas sobre a manipulação da noticia, o direcionamento comercial e tantas outras questões que ao final trazem desinteresse e desconfiança ao leitor. Porém, há de se separar o joio do trigo, tarefa árdua, mas que traz um certo prazer.Hoje me deparei com uma matéria produzida e veiculada pela Revista Ecológico, um trigo editorial, que chegou para mim como “uma luz no fim do túnel”, um sopro fresco de esperança. Alargando a perspectiva do que é ecologia, a revista especializada em meio ambiente abre espaço para um pensador contemporâneo da nossa sociedade, Frei Beto, fazer uma reflexão sobre várias inquietações da humanidade, que agora compartilho com vocês.
Por Cláudia Tanure
Diretora executiva da Press
Mestre em Comunicação organizacional
|
“A ciência é o reino da dúvida”
Uma reflexão entre religião e ciência sob o olhar politizado do teólogo e escritor
O teólogo e escritor mineiro Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, discorre e opina sobre variados temas com propriedade impressionante. Frade dominicano, adepto da Teologia da Libertação e militante de movimentos pastorais e sociais, ele tem opiniões contundentes e visão aguda sobre o ser humano e a vida. É autor de 53 livros – entre memórias, romances e ensaios – editados no Brasil e no exterior. Foi assessor especial do presidente Lula, entre 2003 e 2004, e coordenador de Mobilização Social do Programa Fome Zero. Nascido em Belo Horizonte, em 1944, já recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e em favor dos movimentos populares. Em 1983, ganhou o Prêmio Jabuti pela obra Batismo de Sangue, que descreve os bastidores do regime militar.
Nas páginas a seguir, ele aborda dois aspectos essenciais do mundo moderno: materialidade e fé. Esse mesmo tema foi tratado em Conversa sobre a Fé e a Ciência, livro escrito em coautoria com o físico brasileiro radicado nos Estados Unidos Marcelo Gleiser, avaliando os espaços que cada saber ocupa na sociedade atual.
l Universo
“A humanidade levou mais 1.300 anos para que a razão passasse a ser hegemônica no pensamento. Durante a Idade Média, o paradigma que predominou foi o da fé. Daí, a hegemonia da Igreja. Tudo tinha uma explicação sobrenatural.” “A Igreja se sentiu muito confortável durante o período medieval, porque se baseou na cosmologia de Ptolomeu, que viveu no século III. Ele dizia que a Terra era o centro do universo. Ora, para a Igreja, isso era altamente confortável. Claro que Deus e Jesus Cristo não iriam se encarnar em qualquer planetinha vagabundo, tinha de ser aqui, no centro do universo.”
l Verdade
“A humanidade sempre se perguntou tanto a respeito das verdades religiosas, quanto das explicações naturais. Esse foi um processo de evolução muito sofrido, porque durante séculos e ainda hoje, em algumas situações e regiões, a palavra da autoridade é a palavra da verdade: ou seja, se a gente quer saber como negar a pesquisa científica, é quando a palavra da autoridade é a palavra da verdade.”
l Bíblia
“O triângulo texto-contexto-pretexto vale para a Bíblia e para qualquer literatura: um texto tanto é mais bem compreendido quanto mais eu conheço o contexto em que ele foi produzido e tiro dali um pretexto para a minha vida. Um exemplo: quem conhece melhor a obra de Guimarães Rosa? O mineiro ou alemão? É evidente que somos nós. Mas, tente Goethe [pensador alemão]. É complicado, porque não vivemos aquele período do romantismo alemão.”
“A Bíblia não tem pretensões científicas, é um livro religioso. Ai de quem nela busca explicação científica: estará atribuindo ao texto algo que ele não se propõe a fazer.”
“A Bíblia parece ter sido escrita em Minas. Não tem uma aula de biologia nem de doutrina. Tudo é na base do ‘causo’, alguns ficcionais, outros históricos. A Bíblia é um almanaque… E almanaque tem receita de bolo, guerra, casamento, genealogia, poemas e até erotismo. O ‘Cânticos dos Cânticos’ é um livro erótico. Por isso, antigamente, era proibido aos seminaristas lerem esse livro.”
“Em hebraico, ‘Adão’ significa ‘terra’, e Eva, ‘vida’. O autor bíblico, ao criar esses dois personagens, quis apenas afirmar que Deus é o autor da vida e que a vida vem da terra.”
“Se os criacionistas prestassem atenção, notariam que o autor bíblico fez uma literatura popular, como o Cordel do Nordeste, por exemplo. A fala popular é sempre uma fala plástica, e não conceitual. O discurso de quem é do mundo da universidade é conceitual. O do povão é um discurso plástico, você ‘vê’ o que a pessoa está falando.”
l Cultura
“Não existe ninguém mais culto do que outro. Existem, sim, culturas socialmente distintas e complementares. O sujeito pode ser físico quântico, mas se o carro dele estragar aqui na esquina, pode depender de um rapaz que mal tem ensino fundamental para ajeitar o motor para ele. Nós é que criamos a ideia de que cultura é sinônimo de escolaridade. Isso é bom para a elite, mas não é verdade.”
l Evolução
“No fim do século XIX, a ciência descobriu que somos resultado de uma longa evolução da natureza. As mulheres não gostam de dizer a idade, mas não estarão mentindo se, ao serem perguntadas, responderem: tenho 13,7 bilhões de anos. Todas as moléculas e átomos presentes nos mais longínquos espaços siderais existem no nosso corpo: somos resultado da evolução.”
l Pobreza
“Se a razão humana – com suas duas filhas diletas: a ciência e a tecnologia – é capaz de prever o movimento dos astros no céu, então, para que fé e religião? Estamos nesta sala, podemos olhar para trás e fazer um balanço de 500 anos de modernidade. Houve grandes evoluções? Sim, enormes. Mas, a quem elas beneficiam? Somos hoje sete bilhões de pessoas no planeta. Segundo a ONU, quatro bilhões vivem abaixo da linha da pobreza. Pisamos na Lua. Mas, não conseguimos fazer pousar alimento, nutrientes essenciais, na barriga de milhões de crianças.”
l Diálogo
“A ciência não pode pretender explicar a fé. A menos que a ciência consiga explicar, porque João ama Maria, e não Suzana, mesmo sendo Suzana muito mais bonita. Um cientista não pode chamar o João e dizer: ‘Você está cientificamente equivocado, porque ama Maria’.” l Intuição “A razão é a imperfeição da inteligência: essa frase de São Tomás de Aquino é muito boa. A inteligência é muito mais que a razão; é a irmã gêmea da intuição. O [humorista e escritor] Millôr Fernandes dizia que a intuição é uma ciência que não foi à escola. Graças à intuição, muitos avanços científicos ocorreram. A teoria da maçã, de Newton, e a do elevador, em Zurique, de Einstein, são um exemplo.”
l Desigualdade
Vivemos num mundo assombrosamente desigual. No Brasil, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou há alguns meses, a diferença entre os mais ricos e os mais pobres é de 175 vezes. E apenas quatro norte-americanos: Bill Gates (foto), Warren Buffett, Paul Allen e Larry Ellison – têm, juntos, uma fortuna equivalente ao Produto Interno Bruto de 42 nações, que abrigam 600 milhões de pessoas. Esse é o mundo em que vivemos.”
l Dúvida x Certeza
“Qual o fundamento da ciência? Ela é o reino da dúvida. Ai da ciência que se propõe a ter certezas. Já a fé (a religião) é o reino da certeza; está com o que crê.”
l Futuro
“A grande descoberta de Einstein foi: o espaço é curvo, o universo está em expansão. À medida que o universo ‘caminha’ no tempo, ele dilata o espaço. E ninguém sabe até quando vai durar essa expansão. Dizem que o Sol tem combustível para 10 bilhões de anos. Já se passaram cinco bilhões. Então, é bom a gente tomar cuidado. Daqui a cinco bilhões de anos – se não acabarmos com esse planeta antes, o que é bem provável, diante do que estamos fazendo com a natureza e ela está reagindo – seremos calcinados. O Sol vai inchar, como toda estrela, e explodir. Vai formar novas estrelas, astros, planetas e meteoros. Isso acontece o tempo inteiro, é próprio da natureza.”
l Mercantilização
“Hoje, a ciência virou uma ciência instrumental. Isso se deu muito em função de um paradigma que está começando a ‘pintar’ perigosamente na nossa cultura ocidental. Enquanto o período medieval teve como paradigma a fé, o moderno, a razão; agora estamos entrando na pós-modernidade e o risco é que o novo paradigma seja o mercado: a mercantilização de todas as dimensões da vida, até mesmo das relações amorosas.” “Quando penso naquela moça lá de Santa Catarina, que leiloou a virgindade pela internet, sinto que ela foi induzida a se negar como ser humano digno a tal ponto, que se transformou numa mercadoria, se ofereceu ao mercado.” “Hoje, enfrentamos um problema: a total dissociação entre a ética, o sentido da vida, o projeto civilizatório e o lucro, o levar vantagem e o poder pelo poder. Há uma série de conflitos e, tanto no caso da ciência quanto da religião, o diálogo faria muito bem a ambas. Afinal, a ciência é capaz de fazer a religião refletir, enquanto a religião é capaz de trazer uma contribuição ética, de valores e de subjetividade à ciência. Sempre preservando a autonomia de cada campo, mas, sabendo que na vida das pessoas eles se complementam, não são totalmente distintos.”
l Deus
“Gosto sempre de frisar que não há coincidência entre religião e espiritualidade. Essa é uma grande confusão, e faz com que muitas pessoas se afastem da experiência de Deus, porque confundem religião com espiritualidade.” “As religiões são muito recentes na história da humanidade, têm cerca de oito mil anos. A humanidade, não: tem de 200 a 250 mil anos, desde que o ser humano apareceu. É como a família e o amor: o amor sempre existiu, a família não. É uma instituição recente, moderna. Na antiguidade não existia família nuclear tal como a concebemos hoje, e está sendo ‘detonada’ agora pela pós-modernidade.”
Bibliografia:
WOLTON, Dominique. É preciso salvar a comunicação. São Paulo: Paulus, 2006.
Revista Ecológico