Mídias digitais e o discurso fora da TV
Movimentos contra o racismo encontram nas mídias digitais o espaço por anos negligenciado pela TV
Os que viveram a década de 70 devem se lembrar de um verso bradado pela juventude, sobretudo negra. Nas passeatas, greves, universidades, alguém sempre gritava que “a revolução não será televisionada”. Repetia, na verdade, as palavras de Gil Scott-heron, poeta do movimento Renascença do Harlem, de Nova York, e um dos percussores do rap americano. Para o ativista, as conquistas dos grupos de combate ao racismo dificilmente seriam anunciadas pelos meios de comunicação.
Ele tinha motivos para acreditar nisso. Na época, a TV negligenciava, por exemplo, as ações dos Panteras Negras, grupo surgido na Califórnia para denunciar o policiamento ostensivo nos bairros negros das grandes cidades. Nem dava voz às organizações, como a própria Renascença, que preservavam os discursos de Luther King e Malcon X. Na música The Revolution Will Not Be Televised, gravada em 1971, Scott-heron dizia que de nada adiantava ficar em casa esperando um locutor anunciar as mudanças sociais, por que elas só poderiam ser vistas nas ruas.
Hoje, os movimentos têm mais força. As acusações de racismo, porém, e a violência contra os negros ainda persistem nos Estados Unidos. Há casos emblemáticos, como o de Trayvon Martin, de 17 anos, assassinado por um segurança comunitário na Flórida, e de Michael Brown, de 18, baleado por um policial no Missouri. Episódios que levaram novamente milhares a protestarem em passeatas.
Ao contrário do acontecia na década de 70, os casos atuais de racismo até chegam a TV, mas a maior parte deles alcança grande repercussão mesmo na internet. Lá, estão disponíveis vídeos e fotos, tanto das agressões quanto dos protestos. E é na rede que ganham fama artistas com discursos parecidos com os que tinha Scott-heron. Entre eles, o rapper Kendrick Lamar, autor do verso mais falado nas ruas pelos recentes movimentos negros.
No final de julho, na cidade de Cleveland, Ohio, enquanto a polícia tentava conter os mais exaltados em uma manifestação contra o racismo, muito dos presentes cantavam o refrão da música Alright, de Lamar, cuja tradução seria “Negro, vai ficar tudo bem. Você me ouve? Você me entende? Vai ficar tudo bem”. O clipe da canção, publicado em junho no youtube, ultrapassou nesses dias as 18 milhões de visualizações.
No Brasil, os movimentos e ativistas em defesa do negro também encontram guarita no meio digital. Emicida conseguiu espaço assim. O músico ganhou notoriedade nas batalhas de rimas de Mc’s, travadas em bairros da zona norte e leste de São Paulo, a maioria divulgada nas redes sociais e ignorada pelos programas musicais da televisão. “A internet foi fundamental. Os veículos de comunicação no Brasil ainda são muito conservadores em relação ao hip-hop. Essa fase do freestyle passou em branco para a imprensa, mas não para o público graças à internet. As pessoas puderam acompanhar essas disputas e aí quando a imprensa percebeu a existência do Emicida, eu já era gigante”, disse a um jornal de Lisboa.
Consagrado pelo público e referendado pela crítica, Emicida volta à rede para lançar o disco “Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa”, em que o tema racismo, sempre presente em sua obra, está mais acentuado. Ele traz a música Boa Esperança, nome de um dos navios que traficavam negros para o Brasil colonial. O clipe, postado no início do mês, conta a história de um grupo de cozinheiras, todas negras, que se rebela contra os seus patrões. A mãe de Emicida, uma ex- empregada doméstica, compõe o elenco. A letra é uma porrada. Expressa que o racismo brasileiro vem camuflado na desigualdade social.
Um pensamento já defendido por muitos sociólogos, com base inclusive nas estatísticas. Os negros são, de longe, a maioria nos piores índices do país, de acordo com o IBGE. Dos 10% dos brasileiros mais pobres, mais de três quartos são negros. Mesma cor de quase 70% de toda a população carcerária. “E os camburão o que são? Negreiros a retraficar. Favela ainda é senzala, Jão!”, diz Emicida em Boa Esperança.
Dias depois de a canção chegar à rede, noticiários policiais dos canais de TV aberta falavam sobre a chacina em Osasco, São Paulo, que vitimou 21 pessoas. Testemunhas relataram que os assassinos, camuflados, perguntavam nos bares da periferia quem já teve problemas com a polícia. A resposta positiva era seguida de um tiro na cabeça. Os corpos exibidos pelas câmeras eram quase todos negros.
Por Thiago Silvério
Jornalista da Press